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Gestão sem chefe traz desafios para as companhias

por: Afonso Bazolli
em: Gestão
fonte: Valor Econômico
28 de agosto de 2019 - 17:00

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Por: Maurício Oliveira

Uma empresa sem chefes pode dar certo? Essa questão está cada vez mais presente em um cenário no qual as relações com o trabalho enfrentam transformações profundas e expressões como gestão horizontal, holocracia (método de gestão que distribui o poder entre os funcionários) e organização caórdica (combinação entre caos e um certo nível de ordem) ganham espaço nas discussões sobre o futuro das corporações. Em meio às buscas por novos caminhos, o personagem que mais vem sendo colocado na berlinda é o chefe. Adeptos das novas teorias o veem como a personificação de um modelo ultrapassado, baseado na hierarquia e na imposição de vontades pela opressão e o exercício do poder.

Para o professor Edmarson Bacelar Mota, coordenador do MBA de Desenvolvimento Humano de Gestores da Fundação Getulio Vargas (FGV), o chefe é mesmo uma espécie a caminho da extinção. Considerando-se a sequência projetada para a linha evolutiva do mundo corporativo, até o estilo mais democrático e inspirador de liderança pode ser interpretado como mera sobrevida de uma estrutura condenada. “A progressiva perda do poder concentrado nos chefes é parte de um processo mais amplo, relacionado à necessidade de sobrevivência das empresas”, diz o professor. “Elas são obrigadas a se adaptar gradualmente aos anseios dos profissionais por maior autonomia e realização.”

Pelo que já se vê em outros países, existe a perspectiva de que um número crescente de empresas instaladas no Brasil caminhe nos próximos anos em direção ao modelo de gestão horizontal. Isso quer dizer que o poder deixará de ser marcadamente exercido de forma vertical, de cima para baixo, para ser diluído entre a equipe, de maneira que todos se tornem responsáveis, em conjunto, pelas decisões.

Nas empresas que aboliram a figura do chefe ou reduziram a carga de poder por ele exercida, cada projeto ganha uma configuração própria, com equipes sendo definidas por afinidade com o tema e as lideranças aflorando naturalmente por influência de fatores como a formação, a experiência com o assunto ou o nível de dedicação ao projeto – mas nunca pela imposição do rótulo “oficial” de líder.

Assim, quem é reconhecido como referência em um certo momento assume o papel de aprendiz em outro, de tal forma que as incumbências e as responsabilidades tradicionalmente associadas a um chefe se tornam transitórias e compartilhadas. Do ponto de vista de quem trabalha nessas empresas, é como ter encontrado um meio-termo entre a rigidez da estrutura corporativa convencional e a autonomia proporcionada pelo empreendedorismo.

Muitos ainda veem esse estilo de gestão como utópico, mas alguns exemplos demonstram que já é possível viabilizá-lo. A desenvolvedora de softwares para recrutamento e seleção Vagas.com tornou-se referência quando se fala na eliminação da figura do chefe. Fundada há 18 anos, a empresa amadureceu aos poucos o sistema de gestão baseado no compartilhamento de responsabilidades. “É um modelo que faz todo sentido para a gente, principalmente porque tem proporcionado ótimos resultados objetivos”, diz o fundador Mário Kaphan, 65 anos, referindo-se ao crescimento contínuo da companhia – incluindo a previsão de 10% para o ano, o que levará a receita a ultrapassar a casa dos R$ 40 milhões.

O que o Vagas.com busca no cotidiano é que todas as decisões sejam consensuais – o que não significa que os 150 profissionais que trabalham na empresa passem o dia em assembleias de votação. A metodologia é bem mais simples. As ideias, projetos, propostas e oportunidades de melhoria pensadas individualmente ou em pequenos grupos são publicadas na intranet e podem receber sugestões ou contestações por parte de qualquer colega, de qualquer área, procedimento que internamente é chamado de “controvérsia”. Enquanto os envolvidos originais se juntam aos que abriram controvérsias para buscar o consenso, todos os demais são excluídos daquela discussão.

Outra vantagem desse formato é que a contribuição de cada um fica muito clara, pois tudo se torna público – não há aquela velha situação em que um subordinado apresenta uma ideia ao chefe e este a capitaliza como se fosse sua. Uma possível desvantagem desse modelo seria abrir espaço para aquele tipo de “palpiteiro” que gosta de opinar sobre tudo, perfil que se tornou tão comum nas redes sociais.

Pela experiência acumulada, no entanto, o fundador do Vagas.com diz que comportamentos inadequados acabam sendo repelidos por uma espécie de autorregulação espontânea. “Como tudo fica exposto, as pessoas vão se tornando muito criteriosas e participam das discussões em que realmente podem contribuir com algo relevante”, afirma.

Processos delicados em qualquer empresa, como contratações e demissões, também são decisões compartilhadas por várias pessoas – sempre no espírito da busca de consenso, em que a opinião da maioria predomina. Quanto à definição da remuneração dos funcionários, a decisão do Vagas.com foi criar uma comissão, composta por oito integrantes fixos, e apenas a comissão tem acesso aos salários de todos. Cabe a esse grupo fazer constantes comparações com referências internas e de mercado para identificar eventuais necessidades de reajustes salariais. As informações apuradas nesse processo balizam também as decisões relacionadas a pedidos de aumento.

Contratado para participar de algumas fases do desenvolvimento do modelo de gestão do Vagas.com, o consultor Alexandre Pellaes, 43, teve a carreira e a vida transformadas pela experiência em uma empresa com modelo de gestão horizontal, a subsidiária brasileira da W. L. Gore, indústria americana com 9,5 mil funcionários fundada há quase 60 anos e com atuação em várias áreas, de tecidos a componentes eletrônicos.

Executivo da área financeira acostumado a medir o sucesso apenas pelo resultado concreto obtido por ele e seus subordinados, Pellaes começou a sentir uma certa inquietação, reforçada após o nascimento dos filhos, trigêmeos, há 11 anos. “Quando virei pai e me vi no papel de desenvolver outros seres humanos, percebi claramente que devia fazer isso também no trabalho, algo que até então havia negligenciado”, diz.

Quando estava em meio à busca por um sentido maior para a carreira, além de simplesmente “fazer dinheiro”, Pellaes ouviu de um amigo sobre o modelo de gestão da Gore. Ele foi à empresa para conhecê-la e acabou se candidatando a uma vaga aberta. Foi aprovado. “Os recrutadores estavam muito preocupados em checar se as minhas características e aspirações como pessoa batiam com as da empresa, o que percebi de imediato como um grande diferencial”, lembra Pellaes.

A Gore tem chefes, mas muito menos como parte de uma estrutura de poder. Eles atuam para facilitar o aprendizado e o crescimento individual, por isso são chamados de “sponsors”.

Na companhia americana não há, por exemplo, camadas de gestão, com o objetivo de fazer com que a informação flua livremente em todas as direções. As pessoas e as equipes autogerenciadas podem recorrer diretamente a qualquer um da organização que possa contribuir com o projeto em andamento.

À medida que a companhia cresceu, sentiu necessidade de estabelecer algumas divisões internas – nem isso havia no começo -, como áreas de suporte e unidades de negócio. Só que elas são planas, sem hierarquia. Dessa forma, os funcionários da Gore não têm cargos, são chamados de “associates”.

Depois que saiu da Gore, Pellaes fundou a 99jobs e a Exboss, dedicada a propagar novas formas de relação com o trabalho. Essas novas formas encontram respaldo em uma geração interessada em economia colaborativa e acostumada a dividir o ambiente de trabalho com amigos ou até mesmo completos desconhecidos, como nos espaços de coworking.

Aos 33 anos, Gustavo Tanaka trilhou até aqui uma trajetória que simboliza bem esses anseios. Formado em administração, ele cumpria uma carreira tradicional em multinacionais quando decidiu contestar o modelo e mudar radicalmente de vida, tornando-se empreendedor. Mesmo assim, sentia-se preso à necessidade de buscar investidores para seus projetos. Passou, então, a apostar na economia colaborativa como caminho para empreender.

Ele convidou amigos, que por sua vez convidaram outros amigos, para compartilhar ideias com base no princípio do “esforço dividido, resultados divididos” – uma aplicação radical dos princípios de gestão horizontal. Ninguém mandaria em ninguém e todos dividiriam o que ganhassem, proporcionalmente ao tempo semanal que cada um dedicava ao grupo.

Quando se deu conta, Tanaka havia reunido 38 pessoas das mais diferentes formações. Assustado com a proporção que a ideia estava ganhando, o grupo decidiu fechar as portas para novos participantes e trabalhou em três ideias diferentes de startups – 101Chefs, Academia da Natureza e Personal Brasil -, além de acolher um negócio que já havia sido iniciado, o Quintal de Trocas.

Com o passar dos meses, no entanto, a realidade bateu à porta: a falta de entrada de dinheiro começou a ser um grande problema para alguns e as tensões se agravaram. Um ano e meio depois, o projeto, que hoje Tanaka reconhece ter sido utópico, foi encerrado. As três startups ficaram pelo caminho e só o Quintal de Trocas, que já existia, seguiu adiante.

A experiência foi importante para que Tanaka consolidasse um novo caminho, como palestrante e escritor. “Todos os outros que participaram certamente saíram modificados e amadurecidos. Esse aprendizado é o que ficou de mais importante”, diz. Hoje, ele não tem problemas em reconhecer que muito do que foi desenvolvido ao longo das décadas pelas empresas – hierarquia, salário, metas, avaliação de desempenho- faz sentido, e que o melhor não é tentar reinventar tudo, mas adaptar o que já existe. “Uma gestão mais democrática e participativa não precisa implodir tudo o que veio antes. O equilíbrio está sempre no caminho do meio, mas é preciso conhecer os extremos para saber onde está esse caminho”, diz.

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