Classe C experimenta conseqüências do crédito excessivo e desenvolve estratégias para driblar a diferença entre a renda e as contas. No futuro, compras à vista serão a preferência
Por: Luisa Medeiros
Para a classe C, a materialização da ascensão social é traduzida em uma casa rica em equipamentos tecnológicos de última geração. É o fim da era do bom, bonito e barato que dá lugar ao bom, bonito e fácil de pagar. Com isso, os consumidores estão habilitados a adquirir alguns de seus maiores sonhos de consumo e realizam compras incompatíveis com os seus ganhos reais. O endividamento surge baseado nas formas de pagamento facilitadas, as pessoas se animam com os valores acessíveis de parcelas e acabam não levando em conta fatores como os juros e o valor final do produto, além de não incluírem em seu planejamento espaço para imprevistos possíveis em longo prazo. Alguns dos maiores agentes desse aquecimento são os cartões de crédito concedidos por bancos ou lojas de departamento, seguidos pelas empresas que viabilizam compras com parcelamento em boleto bancário.
Se o crédito foi o maior advento conquistado pelos novos consumidores na última década, o endividamento passa a ser seu maior ponto de atenção para preservar o poder de compra conquistado. A falta de informação consistente e de orientação financeira convergem para um comprometimento que chega a 46,2% da renda familiar da classe C, de acordo com um levantamento da Proteste (Associação Brasileira de Defesa do Consumidor). A maior consequência de possuir contas que superam os ganhos é a redução da qualidade de vida e a perda do crédito.
Para continuar comprando, o consumidor cria estratégias para driblar os órgãos de proteção ao crédito. Comumente as pessoas com menor renda hierarquizam seus débitos a serem pagos para preservar alguma quantia disponível em espécie para sua manutenção mensal. “Uma prática muito comum é chamada de tirar no cartão. Quando todo o potencial de pagamento já está comprometido, ou a pessoa não possui mais crédito, e deseja ou necessita adquirir um bem, ela realiza a compra a prazo no nome de terceiros sob a promessa de pagamento em dia. Essa é uma armadilha perigosa para o endividamento”, aponta Shirley Torquato, Antropóloga e Especialista em Consumo Popular e Endividamento da consumoteca, em entrevista ao Mundo do Marketing.
Endividado, eu?
A forma dos novos consumidores lidarem com a existência de dívidas varia de acordo com a relevância que atribuem a cada conta. O fato de ter o nome nas listas do SPC e Serasa não é o suficiente para se considerarem endividados, pois os débitos ganham pesos morais distintos. “O conceito de endividamento é muito complexo. Assim que cheguei a um dos prédios do PAC para desenvolver meu trabalho, muitos dos moradores com quem conversava diziam que não eram endividados. Com o tempo descobri que vários deles tinham restrições no nome. Quando questionava, boa parte me dizia que apesar do nome estar sujo, a dívida não era deles e alegavam ter emprestado o cartão a um amigo que não pagou ou cobrança abusiva de tarifas. Portanto, não era justo pagar”, comenta Shirley Torquato.
As contas mais antigas tendem a perder a relevância diante dos olhos desses consumidores que priorizam o pagamento das dívidas recentes e de maior valor. “O senso comum diz: eu não quero ficar endividado. Mas na prática, a dívida é vista de várias maneiras. Existe uma moral negativa muito forte atrelada ao devedor, visto como alguém que não é digno de confiança. Esse peso é amenizado quando a pessoa se posiciona como interessada em pagar, ainda que não possa. O pensamento que comanda é: tenho dívida em tal loja sim, mas eu já vou pagar”, diz a Especialista em Consumo Popular e Endividamento da Consumoteca em entrevista ao portal.
Outro fator que influencia na aceitação social dos débitos é a finalidade com que os gastos foram feitos. Quando as contas estão diretamente relacionadas à construção de moradia e equipamentos para a casa, são vistas como necessárias. “As dívidas feitas para uso comum da família são compreendidas como justas porque beneficiam a todos e reafirmam que o chefe daquela casa está dando o seu melhor para exercer suas obrigações de provedor. Já contas relacionadas a vestuário, por exemplo , são encaradas como supérfluas por representarem um benefício individual”, analisa Hilaine Yaccoub, Antropóloga e Especialista em Consumo Popular da Consumoteca, em entrevista ao Mundo do Marketing.
Hierarquia das contas
Para adequar o orçamento às despesas e pagamento de dívidas, o consumidor faz seu orçamento baseado na hierarquização das contas. Ele prioriza os pagamentos que estão diretamente relacionados à manutenção da vida cotidiana e reveza parcelas de bens de consumo. “O mais importante é a alimentação, seguida pelo gás e pela luz. As outras contas acabam ficando em último plano. Dentro desse processo, novas despesas acabam acontecendo como um filho que adoece, ou um eletrodoméstico de primeira necessidade que estraga e precisa de concerto, o que complica ainda mais a situação de quem não tem um planejamento”, analisa Shirley Torquato, em entrevista ao Portal.
Este malabarismo para fechar as contas no final do mês se reflete em números na economia nacional que registrou 60,2% das famílias endividadas em janeiro de 2013, número 1,2% maior do que no mesmo período de 2012, de acordo com a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor da CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens). Deste total, 28% pertencem à classe C. Um levantamento do Proteste do segundo semestre de 2012 aponta que cada núcleo familiar da nova classe média tem no mínimo três contas diferentes e que pelo menos uma delas é no cartão de crédito, que é responsável por 74% do total das dívidas.
Mesmo liderando o endividamento, e com margem de juros anuais que podem chegar a 238%, os cartões de crédito são somados como parte da renda por sua versatilidade. “Depois de pagar as contas essências relacionadas à casa, se o consumidor precisa escolher entre pagar o carnê das Casas Bahia ou cartão de crédito, ele não hesita, pois o cartão viabiliza um leque maior de opções. Com o plástico ele pode comprar o que quiser”, diz Daniel Pla, Professor de Varejo da FGV, em entrevista ao Mundo do Marketing.
Cenário atual e projeção do consumo
Os frutos das parcelas, carnês, créditos consignados, cartões de créditos e cheques especiais aparecem em casas bem equipadas e em um padrão de vida ascendente que inclui alguns itens antes inimagináveis para esta parcela da população, como idas a restaurantes e viagens. Mas este padrão construído sobre financiamentos pode estar ameaçado pela inadimplência. “Quando um consumidor de menor renda consegue uma televisão que não é comum nem entre a classe B, ou um celular de última geração, isso significa que ele está endividado. Com o tempo, a probabilidade é de que não consiga sustentar este padrão e precise retroceder”, analisa Daniel Pla.
Outro fator que começa a pesar no orçamento é o crédito excessivo, anteriormente oferecido como bônus pela migração de classe social e que agora resulta no comprometimento da renda com dívidas junto às instituições financeiras. “A maioria dos endividados passa os dois primeiros anos acreditando que vai conseguir quitar as dívidas e se esforça muito para isso, mas o valor vai crescendo até o momento em que não consegue mais pagar. Então vem o banco e oferece a possibilidade de quitação em prestações a perder de vista e com juros que parecem pequenos, mas na realidade superam o crédito inicial”, comenta o Professor.
A superação deste processo de comprometimento da renda e perda de crédito deve contribuir em longo prazo para o amadurecimento dos novos consumidores. “Existe muito espaço para endividamento desse grupo. Ainda temos crédito disponível. O que deve acontecer nos próximos anos é uma onda de inadimplência violenta. Eles estão perdendo o crédito, deixam de pagar as contas que fizeram, mas não param de consumir. Continuam comprando, só que à vista. Isso deve contribuir positivamente para uma compra mais consciente”, projeta o Professor de Varejo da FGV, em entrevista ao portal.
Amadurecimento destes consumidores
Como a experiência do endividamento projeta um novo perfil de consumo entre a nova classe média, os carnês devem dar lugar ao pagamento à vista. “Quando o consumidor de menor renda passa pela situação da perda do crédito, simplesmente não quer mais comprar a prazo. Existem até aqueles que não querem comprar a prestação novamente. Tudo para não passar pelo constrangimento de não ter uma transação aprovada. Isso gera uma resistência aos crediários”, aponta Shirley Torquato.
É o caso da Assistente de Barista Débora Ramos que chegou a ter contas maiores que a sua renda mensal de R$ 1.200,00. Após conseguir quitar suas dívidas ela prefere demorar mais para comprar itens de maior valor do que apelar para o parcelamento. “Tinha três cartões de crédito que somavam mais de R$ 1.000, 00 de limite. Fui usando e depois me compliquei. Quando finalmente paguei tudo, optei por ficar com apenas um cartão. Atualmente tenho limite de R$ 300,00. Precisei usar uma parte deste crédito, mas parcelei conscientemente e estou pagando em dia. Minha preferência é pelas compras à vista. Junto o dinheiro porque além do desconto, é menos uma dor de cabeça no fim do mês”, conta Débora Ramos, em entrevista ao Mundo do Marketing.
Esta deve ser uma realidade cada vez mais frequente entre os ex-endividados da classe C. “Surge um movimento dos consumidores que após passarem pela experiência das dívidas se conscientizam que 10 vezes sem juros é uma ficção. Eles passam a valorizar os descontos dados para as compras sem parcelamento. Este ainda é um percentual pequeno das pessoas, mas que tende a crescer nos próximos anos”, complementa Daniel Plá, em entrevista ao portal.
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